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10 agosto 2017

Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos


Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos

Por Arquitecto Rui Campos Matos, Presidente da Ordem dos Arquitectos - Madeira

in Diário de Notícias Madeira, 10 de Agosto de 2017


Eu dou graças a Deus por estar vivo e ainda ser capaz de amar esta cidade e todos os seus mistérios.

Em conversa recente com o meu amigo Duarte Mendonça, profundo conhecedor da vida devota e da história dos conventos madeirenses, fiquei a saber que António Aragão, em artigo publicado neste jornal nos anos 60 ou 70 do século passado, se terá referido à possibilidade de trazer à luz do dia a antiga Capela das Almas do já extinto e demolido Convento de São Francisco no Funchal. O convento ocupava, mais coisa menos coisa, o lugar onde hoje viceja o Jardim Municipal, e a dita capela, mais conhecida como “capela dos ossos”, seria em tudo aparentada com a famosa Capela dos Ossos do convento de São Francisco em Évora, um dos monumentos mais visitados pelos turistas que hoje procuram os calafrios da emoção mórbida....

A capela dos franciscanos funchalenses, de acordo com a abalizada opinião de António Aragão, teria sido uma cripta, isto é, uma catacumba sepulcral subjacente à igreja do convento. Tudo faria supor, portanto, que estando enterrada, teria escapado à demolição que, na segunda metade do século XIX, varreu definitivamente o convento de São Francisco da paisagem urbana do Funchal. Bastaria, portanto, proceder a algumas prospecções subterrâneas no Jardim Municipal para encontrar o velho carneiro, desentulhá-lo e trazer de novo, senão à luz do dia, pelo menos à luz de uma nova e feérica instalação eléctrica, as centenas de crânios e tíbias que lhe decoravam as paredes!

A reprodução desta capela dos ossos na litografia colorida da edição de 1806 de A Voyage to Cochichina de Sir John Barrow, um dos muitos botânicos e pintores que visitaram a Madeira em finais do século XVIII, não deixa lugar a dúvidas: a capela tinha todos os ingredientes para se tornar (como efectivamente, no século XIX, se tornou!), num extraordinário atractivo turístico. Abundam os regístos dos que a visitaram e se deixaram impressionar pelo tétrico espectáculo. Valerá a pena tentar encontrá-la e desenterrá-la? Eis a questão que aqui fica em aberto. Não sei. Sempre duvidei de tudo o que é feito para agradar a turista, ou “para inglês ver”, como diz a sabedoria popular e a veneração nua e crua dos despojos humanos tem qualquer coisa de obsceno.

A verdade, porém, é que foi contemplando uma caveira que o soturno Hamlet formulou a questão crucial do homem contemporâneo: ser ou não ser, to be or not to be, that is the question....Eu próprio, nestas suaves noites de Agosto do Funchal, em que os agrestes alíseos do aeroporto aqui chegam como uma carícia suave, sou tentado a declamar, teatralmente, em altos berros, da varanda do meu terceiro andar: to be or not to be! A frase ecoa nas vertentes das montanhas, reflecte-se nas lajes de betão do novo hotel Savoy, sobe ao sétimo céu, perde-se nos confins do oceano, e eu dou graças a Deus por estar vivo e ainda ser capaz de amar esta cidade e todos os seus mistérios.

Rui Campos Matos.


12 agosto 2016

INCÚRIA

 

Incúria

O Funchal foi uma cidade que cresceu desordenadamente nas suas periferias altas

 Arquitecto Rui Campos Matos, Presidente da Ordem dos Arquitectos - Madeira


No momento em que escrevo estas palaras, está ainda por fazer o balanço dos estragos causados pelo fogo que vai lavrando nas zonas altas do Funchal e, todavia, é já possível lamentar a incúria que o alimenta. Os incêndios não são um problema novo na história da capital do arquipélago. Em 1470,  o Infante D. Fernando, governador das ilhas atlânticas, determinou que as casas da florescente Rua dos Mercadores, se «cobrissem de telha», já que na sua grande maioria, eram construídas em madeira e cobertas de palha. Aparentemente, de pouco terá servido esta determinação, porque no Verão de 1593, numa noite em que o vento leste soprou quente e seco como uma labareda, um violento incêndio devastou a baixa, tendo queimado, em apenas 4 horas, como refere António Aragão na sua história do Funchal, cerca de 154 casas, «as melhores e mais principais de toda a cidade». A devastação foi tal que o episódio sobrevive na toponímia local dando nome às ruas da Queimada de Baixo e da Queimada de Cima.
Ao longo do século XVII, as casas em madeira e colmo foram sendo progressivamente substituídas por construções de pedra e cal com cobertura em telha, tornando mais difícil a propagação das chamas. Ardia pontualmente, aqui ou ali, uma casa sobrada, mas a ossatura de alvenaria ficava de pé e o corpo da cidade sobrevivia. Os incêndios continuaram, porém,  a devastar a periferia, despojada da sua vegetação endémica e mais resistente ao fogo. O padre Augusto da Silva dá-nos conta do monstruoso incêndio que no verão de 1919, varreu o perímetro do Funchal: «no Monte e em São Roque, tomou proporções verdadeiramente assustadoras, abrangendo uma área de alguns quilómetros e ameaçando destruir um grande número de habitações». As semelhanças com o que se passou nestes últimos dias é gritante. Será que nada pode ser feito fazer para prevenir este tipo de tragédias? Pode.
Trata-se, em primeiro lugar, como, aliás, já referiu o Presidente da República, de um problema de ordenamento do território e planeamento urbano. O Funchal foi uma cidade que cresceu desordenadamente nas suas periferias altas: acessos difíceis, arruamentos estreitos, construções em contacto com florestação desadequada. Teria sido necessária uma persistente política de requalificação urbana destas áreas. Infelizmente, pouco ou nada foi feito nas últimas décadas. Em segundo lugar, ficou claro que é através dos edifícios devolutos (alguns propriedade do Governo Regional...), com os logradouros abandonados e os telhados semi-arruinados, que o fogo penetra na antiga cidade de intramuros, como agora aconteceu na freguesia de São Pedro. Infelizmente,  nunca existiu, no Funchal, uma verdadeira política de reabilitação urbana.
Por último: quando a situação é de emergência é bom que exista um comando centralizado que fale a uma só voz através dos meios de comunicação social, mantendo a população informada e dando instruções precisas, a intervalos regulares,  sobre os procedimentos a tomar. O que ouvimos, porém, foi uma desconexa cacofonia a que não é alheia a fome de protagonismo político.  Exceptuando as condições atmosféricas, nada disto é inevitável. Damos-lhe o nome de incúria. 


in Diário de Notícias Madeira, 12 de Agosto de 2016.

26 abril 2016

Estudo de Prospecção e Defesa da Paisagem Urbana do Funchal, de António Aragão

 
O Valor do que Herdamos
Existe entre nós um considerável desconhecimento do significado dos edifícios históricos

Arquitecto Rui Campos Matos, Presidente da Ordem dos Arquitectos - Madeira

A preservação do património imóvel de uma cidade, dos edifícios, praças, ruas e bairros cujo carácter fazem dela obra única e digna de ser visitada, mais do que uma questão consensual, é hoje, também, uma questão de sobrevivência.  O Documento Estratégico para o Turismo na RAM (2015-2020), publicado pela ACIF/ KPMG, considerou a «qualidade ambiental e paisagística das zonas urbanas e rurais» como um dos «factores críticos de sucesso» da actividade turística, recomendando explicitamente a preservação e valorização do nosso património cultural e histórico. Temos, portanto, de admitir que, na Madeira, quando um edifício histórico é abandonado à sua sorte, demolido ou desfigurado por uma obra canhestra, há sempre, na raiz do infausto acontecimento, um problema de ignorância.

A avaliar pela quantidade de edifícios históricos desfigurados ou em ruínas na Região é de crer que existe entre nós um considerável desconhecimento do seu significado.  É esse desconhecimento que a Delegação da Madeira da Ordem dos Arquitectos tem procurado combater, promovendo debates, conferências e exposições onde se pretende divulgar o nosso património imóvel. Infelizmente, nem sempre os meios que temos ao nosso alcance nos permitem fazer o que ambicionávamos e nem sempre aqueles que mais beneficiariam destas acções tem comparecido. Assim sendo, e para evitar que esta preciosa herança se continue a degradar, a Delegação, ao abrigo do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 309/2009, irá dar início a um processo de classificação de vários edifícios do Funchal.

Alguns deles foram levantados em 1966 pelo Dr. António Aragão no seu Estudo de Prospecção e Defesa da Paisagem Urbana do Funchal  - como  é o caso, por exemplo, da belíssima construção do séc XVIII, hoje em ruínas, que podemos ver na imagem;  exemplares, mais recentes, como o Mercado dos Lavradores e o Liceu Jaime Moniz, peças maiores da arquitectura do primeiro modernismo português, ou  a Capela-Ossário do Cemitério de Nossa Senhora das Angústias, projectada em 1951 por Chorão Ramalho, serão também objecto do nosso interesse; finalmente, alguns conjuntos urbanos, essenciais para a preservação do carácter da cidade do Funchal, como sejam a R. dos Ilhéus ou os antigos caminhos dos Saltos, do Monte e da Torrinha, merecerão também a nossa atenção.

Uma vez aberto o procedimento de classificação, estes edifícios ficarão abrangidos por um regime de suspensão de licenças para a realização de obras, isto é, dependentes da prévia autorização da DRC para as executar.  Mão amiga e culturalmente avisada poderá, então, guiar promotores públicos e privados na realização dessas mesmas obras, que tão necessárias são à sua preservação. Esta iniciativa contará, estou certo disso, com o apoio de todos os partidos e instituições que gerem o nosso património. É tempo de nos começarmos a preocupar (e a orgulhar!) com a herança que os nossos antepassados nos legaram porque dela depende a nossa identidade e bem estar. Dela depende o futuro da Madeira como destino turístico  e o nosso destino como comunidade civilizada.

in Diário de Notícias Madeira, 06 Abril 2016
http://www.dnoticias.pt/impressa/diario/opiniao/579210-o-valor-do-que-herdamos